Ópera com cinema e encenação contemporânea assume o palco do Municipal
- lhisca
- 22 de mai. de 2015
- 4 min de leitura

RIO — A partir de hoje à noite, as feições do teatro contemporâneo — marcado pela desconstrução cênica e por borrar a fronteira entre as artes — assumem o palco mais nobre da cidade, o do Municipal. Atração de abertura da temporada lírica de 2015, a ópera “Fidelio”, de Ludwig van Beethoven (1770-1827), entra em cartaz, às 18h, com direção musical e regência de Isaac Karabtchevsky e uma boa novidade: a estreia de Christiane Jatahy na direção cênica de óperas. A parceria entre a diretora, conhecida por ampliar as possibilidades audiovisuais do teatro, e o atual presidente da Fundação Theatro Municipal mostra o quanto tradição e experimentação podem, juntas, levar a ópera a novos caminhos.
— É uma ópera marcada por elementos não tradicionais, criada numa fase em que Beethoven vivia um limiar, a busca de uma nova linguagem — diz Karabtchevsky. — Então precisava de um diretor que compreendesse e soubesse conduzir esse espírito desbravador de Beethoven. E tudo na expressão de Jatahy é afinado à proposta libertária de Beethoven.
A encenação vai cumprir quatro récitas — hoje e nos dias 28, 30 e 2/5, às 20h —, e é um verdadeiro rito de passagem na carreira da diretora.
— Quando ele me convidou eu avisei que nunca tinha dirigido óperas, mas acho que era isso o que ele queria — diz Jatahy, que também teve acesso pela primeira vez ao conteúdo da ópera. — Já tinha ouvido falar dela, mas nunca tinha lido o libreto e estudado a fundo. Realmente tem sido uma experiência inaugural em todos os sentidos. Tenho aprendido muito. E fico feliz de todos do Municipal, da orquestra ao coro, dos solistas aos atores, estarem tão dispostos a criar algo que desconstrói um pouco a ópera tradicional.
O maestro explica que o ímpeto renovador e a busca por novas formas traduzem o momento que Beethoven vivia quando compôs a obra. Única ópera escrita pelo alemão, “Fidelio” estreou em 1805 e foi um fracasso. Rejeitada pela crítica, foi recriada ao longo de quase uma década, até que uma terceira versão retornou aos palcos e foi consagrada, em 1814.
— Havia à época uma forte tradição do bel canto italiano, da ópera marcada por temas leves, mas Beethoven via tudo com densidade — diz Karabtchevsky. — Tudo nele era assim, mais complexo e difícil, então “Fidelio” feria certos cânones.
Em relação à forma musical e à temática, “Fidelio” é uma ópera política, que se desenvolve a partir das tentativas de uma mulher (Leonore) de libertar o marido (Florestan) da prisão. Tudo começa quando Leonore troca de gênero e se transforma em Fidelio. A partir daí, convence o carcereiro Rocco a aceitá-lo como ajudante e, assim, ter acesso ao calabouço onde Florestan está preso e isolado em condições desumanas. Reflexões sobre poder e justiça, opressão do estado e cerceamento de liberdades individuais conduzem uma rocambolesca trama que objetiva, ao fim, reconduzir à luz e à liberdade os presos políticos da masmorra de Sevilha.
— É uma ópera de impulso libertário, de luta contra a tirania — diz o maestro.
Jatahy complementa:
— Beethoven fala de liberdade, de igualdade de direitos, de integração, então todo o meu trabalho de encenação traduz esse caminho.
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Nesse sentido, a encenação de Jatahy apaga a fronteira entre linguagens — teatro, cinema e ópera —, rompe com a hierarquia entre os performers — integra os 96 cantores do coro com os nove solistas convidados —, assim como também rompe com a quarta parede e aproxima os artistas do público, misturando palco e plateia como única zona de encenação.
— Vejo todo o teatro como o lugar da cena — diz.
Tanto é que decidiu tornar toda a parte subterrânea do palco do Municipal a locação de um filme em média-metragem que será exibido no segundo ato da montagem. Roteirizado e dirigido por Jatahy, e com direção de fotografia de Paulo Camacho, o filme conta com os atores Stella Rabelo, Julio Machado, Ricardo Santos e Danilo Grangheia, que representam os personagens centrais de “Fidelio”, Leonore, Florestan, Rocco e Pizarro.
— São personagens duplicados, que serão interpretados pelos atores no filme e pelos solistas no palco — diz ela. — O filme é mudo, então teremos solistas contando o que se passa no palco.
E o que se vê no palco, além do filme, é um corte com o que se espera de uma ópera. Em sua mise-en-scène, Jatahy rompe com uma visualidade ilustrativa, com cenários realistas e com a reconstituição de época através de objetos e figurinos.
— Não é um trabalho de época, mas de hoje — observa a diretora. — É uma ópera sem cenário. O palco está nu. Revelamos sua aparência e seus mecanismos internos. É muito instigante levar o teatro contemporâneo à ópera.
EM BUSCA DE NOVAS FORMAS
Nos últimos dez anos Jatahy se dedicou à elaboração de um teatro atravessado por técnicas de vídeo, cinema e documentário. De “Conjugado” (2004) a “Corte seco” (2009), sua mistura ganhou complexidade e requinte visual, resultando em obras como “Julia” (2011) e “E se elas fossem para Moscou?” (2014), criadas em parceria com o cenógrafo Marcelo Lipiani, que também assina a direção de arte de “Fidelio”. Com esses trabalhos, Jatahy conquistou os mais importantes prêmios nacionais — como o APTR e o Shell de melhor direção, em 2012 e 2014 —, assim como se tornou a mais requisitada representante do teatro brasileiro no exterior — suas duas últimas peças figuram na programação dos mais importantes festivais europeus desde 2012. O convite do Municipal, portanto, reconhece a importância de seus últimos feitos e denota o quanto a busca por novas formas de encenação e de fazer teatral, se burilados ao longo de anos e de modo constante, não resultam em mero exercício, mas em novos rumos e possibilidades.
— Eu me interesso por essa mistura entre as artes típicas da criação contemporânea, por borrar as fronteiras do teatro com outras linguagens — diz ela. — Após anos de dedicação a esse trabalho de fusão entre o cinema e o teatro, agora surge a ópera como um novo campo de investigação. Espero que eu possa continuar.
E se depender do maestro, isso vai acontecer:
— Se tudo der certo, em breve vamos montar um “Woyzeck”, e ela cuidará da direção.
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SERVIÇO — “Fidelio”
Onde: Teatro Municipal — Praça Floriano s/n°, Centro (2332-9191).
Quando: Hoje, às 18h, 28 e 30/4, às 20h, e dia 2/5, às 20h.
Quanto: De R$ 50 a R$ 600.
Disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/teatro/opera-com-cinema-encenacao-contemporanea-assume-palco-do-municipal-15977448
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